Entrevista de Richarlison ao Olé mostra que ele é o jogador mais politizado do Brasil
Veja o que o astro da seleção canarinho, autor dos dois gols na estreia da Copa, disse ao diário esportivo argentino no ano passado, especialmente sobre Bolsonaro
O atacante Richarlison do Tottenham, da Inglaterra, e da seleção brasileira, autor dos dois gols que deram a vitória à canarinho na estreia da Copa do Mundo do Catar, contra a Sérvia, nesta quinta-feira (24), é de longe o mais politizado e consciente jogador de futebol desta geração no país.
Com 25 anos, o descontraído e engraçado futebolista, que também se notabilizou por seu jeito simples e pela imitação do pombo quando faz um gol, é uma ilha de consciência política e social dentro de um elenco marcado por superestrelas que só pensam em se gabar de seus milhões de euros, carrões e romances com mulheres famosas.
A percepção geral da sociedade brasileira e até estrangeira para a noção política e intelectual de Richarlison se deu, sobretudo, a partir da pandemia. O atleta foi um ferrenho defensor das medidas de prevenção à Covid-19, cobrou responsabilidade de todos no enfrentamento à mortífera doença e foi um dos mais aguerridos incentivadores da vacina, causa para qual fez inclusive doações robustas.
Numa entrevista concedida ao diário esportivo argentino Olé, em outubro de 2021, o atacante do Tottenham falou sobre vários assuntos, a maior parte deles relacionados ao mundo do futebol, mas deu também extensas e contundentes declarações respondendo a questões sobre política, sobre o governo caótico, extremista e negacionista de Jair Bolsonaro e a respeito de temas complexos, como desigualdade social e cidadania.
Confira o trecho da entrevista ao Olé em que Richarlison aborda esses temas:
Olé - Qual foi o melhor exemplo que seus pais lhe deram?
Venho de uma família que passou por muitas dificuldades, como as famílias da maioria dos jogadores de nossos países. Cresci numa zona da cidade (Nova Venécia) que era bastante complicada, devido à violência, drogas e muitas outras coisas ruins. Meus pais sempre me incentivaram a seguir o caminho certo, mesmo que fosse o mais difícil. Então aprendi a valorizar cada pequena conquista que tive na vida. Também não deixei que as portas que estavam fechadas me fizessem desistir. Quando falhei nas seletivas lá no Brasil, meu pai foi o primeiro a me encorajar e não deixar que eu parasse de tentar. Houve um episódio em que fui rejeitado em um clube em um aniversário, nunca vou esquecer. Foi o pior aniversário de todos. Mas meu pai estava lá para me fazer levantar a cabeça e continuar tentando.
Olé - Você disse que quando era criança vendia balas e sorvetes. Quando você vê um cara fazendo o mesmo, você se vê refletido nele?
Essa é a realidade de muitas crianças da minha cidade e do Brasil. Muitos abandonam a escola e precisam trabalhar para ajudar no sustento de suas famílias. Sempre que vejo uma criança que precisa abandonar a escola, fico com o coração partido. Claro que me vejo refletido neles e sei que poucos terão a mesma sorte que eu de se profissionalizar, de ter me destacado e de atuar e viver na Europa. Muitos se voltarão para as drogas ou terão empregos ruins para o resto de suas vidas porque não terão a oportunidade de se profissionalizar em nada. Em suma, é um problema gravíssimo no Brasil, mas poucos parecem dispostos a realmente resolvê-lo.
Olé - Você faz muitas campanhas de assistência social, qual a maior alegria que te levou a se entregar a isso?
Acho que faço por inconformidade, porque vejo a situação das pessoas e quero tentar mudar alguma coisa. Sei que o que faço é muito pouco para o que eles precisam. Não posso mudar a realidade de todos, mas se eu conseguir mudar a mentalidade das pessoas que podem e não podem ajudar, me sentirei vitorioso. Eu quero ser um exemplo positivo. A maior alegria que tenho é ver o sorriso no rosto das pessoas e saber que fiz algo de bom para alguém. Isso não tem preço.
Olé - Você compartilha de alguma das políticas de Jair Bolsonaro?
Minhas causas não são partidárias. Sou mais apegado a ideias do que a nomes e imagens. Infelizmente, no Brasil faltam políticos que realmente representem e se preocupem com o nosso povo. Se o governante estiver realmente preocupado em dar uma vida digna às pessoas, colocar comida na mesa, proporcionar acesso à educação, gerar empregos, proteger o meio ambiente e melhorar a saúde do meu país, vou aplaudi-lo e apoiá-lo. Se não, serei o primeiro a criticar e apontar o dedo. E duvido muito que hoje um cidadão brasileiro possa aplaudir, com tudo que aconteceu por lá. À medida que os preços, a inflação, a fome e o desemprego disparam, muitos políticos estão preocupados com suas próprias causas. E são sempre os mesmos, fazendo as mesmas coisas. As pessoas devem estar cientes de que, se não mudarem a escolha de seus representantes locais para o Presidente da República, tudo continuará como está. O poder está em nossas mãos na hora de votar e escolher quem vai nos representar. A maioria é soberana, mas precisa mesmo ter esse desejo de mudança e fazer fortes cobranças aos seus escolhidos.
Olé - Você contou um episódio difícil quando uma arma foi apontada para você quando criança. Que impacto essa situação teve em sua vida? Isso ajudou você a ser mais resiliente diante da adversidade?
Isso me mostrou que eu não queria estar em nenhum dos lados dessa arma. Nem do lado que está ameaçado, nem do lado que poderia ter matado alguém. E toda vez que alguém me pergunta se eu tenho medo de alguma coisa, eu me lembro desse episódio. Qual é a coisa mais assustadora que pode acontecer na vida de alguém? Só se o cara puxar o gatilho... Mas provavelmente eu não estaria aqui para contar essa história. Desde então eu sabia que queria uma realidade diferente para mim e minha família. Acho que me deu ainda mais força para lutar pelos meus objetivos e ter uma vida melhor. Graças a Deus eu tenho.