O TREM DE PIRANHAS [...]
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 25/11/2024 - 10h 36min0
OTREM DE PIRANHAS, NAS MARGENS DO SÃO FRANCISCO, E DO OUTRO LADO DO RIO A GROTA DO ANGICO
O padre Velho foi avisado por seu amigo Polissíndeto, dono de farmácia, que o melhor remédio era não ir às igrejas monolíticas. Chefes de forças volantes aconselharam o padre a ficar em Santana.
Havia um compromisso fervoroso do padre Velho em peregrinar pela remissão de seus pecados. E não se intimida com o bando de Conveniência.
No Estado efervescem as forças volantes. Algumas das quais foram formadas em Santana.
Contrariou o padre Velho diante dos eventos e viajou de Santana a Pão de Açúcar no lombo de Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar. Viagem demorada e paciente.
Em Pão de Açúcar, distante a mais de 10 léguas de Santana, chegaram o padre e Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar. O padre deixou Esperança com o padre local e embarcou nas águas do São Francisco em direção ao município de Piranhas.
Chegou ao porto de Piranhas, o padre Velho foi à estação ferroviária. No guichê próximo à plataforma, ele comprou a passagem até Jatobá.
D. Etnia, irmã de D. Carrancuda, que morou em Santana, vendia bilhetes na estação. O São Francisco roncava.
O fluxo das embarcações na calha do rio lembrava um quadro de Frans Post. No baixo São Francisco, o Porto de Piranhas fortalecia a economia.
Resfolegou o trem e seguiram apitos regulares. O cavalo de aço cheio de fiéis que se deslocavam de todo o sertão às igrejas monolíticas. Eram templos antiquíssimos escavados em rochas e cercados por sepulcros de santos.
O fenômeno do cangaço...! começou a rascunhar no sacolejo do trem.
O padre Velho elaborava um vindouro artigo ao semanário santanense. O Liberdade de Expressão já supera a circulação, a tiragem e as assinaturas do Jornal do Ser Tão, impresso no DF, Rio.
Os jornais no Brasil e no exterior reportavam o sertão como epicentro dos subgrupos de cangaceiros com as suas peripécias e violências. A destruição em pilhagens, furtos, roubos, assassinatos, incêndios a cartórios, estupros, sequestros.
Na viagem de trem, o padre Velho trazia entre as mãos o mito de Hades e Perséfone. A beleza dela atraiu a concupiscência de seu tio, que a sequestrou ao submundo. Neste dia, a tristeza de Deméter devastou a agricultura.
O padre Velho avistava a terra seca, pedras, espinhos-de-roseta. E o trem de Piranhas corria às margens do São Francisco. Se atravessasse o rio, a Grota do Angico estava no outro lado, coberta por vegetação densa em solo pedregoso.
O fenômeno do cangaceirismo...! riscava e refazia as ideias, o padre Velho, com os primeiros substantivos na cabeça onde o chapéu preto lhe queimava os píncaros.
O epicentro dos cangaceiros foi...! o padre Velho mudava o léxico, parava, reescrevia mentalmente, mergulhava no poço imaginário de vocábulos.
Na janela do trem que se jogava de um lado a outro, o padre Velho avistava Poço Redondo na margem oposta do São Francisco. Xepixilepixepi fazia o trem nos trilhos como se acompanhasse o ritmo de sanfonas, reviveu o ritmo do baião, ouvia-se o chiado na chinela xepixilepixepi, xepi-xepi-xepi, xepixilepixepi.
Na vastidão do tempo profundo via-se a terra desértica que se exuberava nas primeiras chuvas. De longe, eu via a faveleira no galho balançar com o vento.
A intensa claridade. No percurso na caatinga, o trabalho no corte à porta de casa pelo homem que trabalhava na costura do couro, na feitura da sela, na confecção de alforje, alpercatas, chapéus de vaqueiros, gibão, perneira.
Homens de couro cavalgavam cavalos, e atravessavam a caatinga atrás de rês desgarrada. Corria o homem de couro, lembrava o homem de lata medieval, corria a cavalo, curvava-se, segurava o chapéu de aba curta e sem barbicachos.
O padre Velho imerso em suor. Cochilava no balanço do trem.
O analfabetismo corria solto como um rio que recebia água de chuva em calha larga, água de chuva intermitente. A chuva fez acordar o padre, que suava debaixo do chapéu; no rosto, corriam-lhe grossos fios de suor.
O dia quente, repleto de silêncios. De repente, a chuva. De repente, o batuque, a dança do landum. Não era chuva, não era nada, era o atrito do trem nos trilhos. Com o tempo, trechos da modinha nas janelas do trem de Piranhas a Jatobá:
No tempo bom de juventude,
Fiz correr trem em Piranhas.
A viagem me levou a Jatobá.
Velha aroeira deixada em frente de casa. Enquanto batia sola, ouvia cantar:
O tempo bom de juventude.
Peguei o trem em Piranhas,
E fui e fui e fui, fui a Jatobá.
O sertão era lavouras. Em cada lugar o povo fazia morada. Quando tinha sorte. Com o tempo, a prole começou a brotar feito lavoura. E o sertão era feito de lavouras.
Próximas às lavouras, as casas eram erguidas; próximas a elas, a fé, que nunca faltava, e além dela o comércio. Assim surgiam os adjuntos de casebres, casas, as vilas, que eram muitas, as aldeias, os povoados, os lugares de ruas e de becos nos quais se comemorava a presença da vida.
Nestes lugares ermos que pontilham o sertão, lugares de passagem de cangaceiros e volantes, que eram tantos, quase a quantidade das pedras soltas sobre a terra seca e os espinhos-de-roseta. E ouvia-se a conversa que transitava nos vagões do trem.
Em Santana, uns acusavam o padre Velho de teimoso; outros de que ele era o último homem de fé. Corria o trem nos trilhos entre Piranhas e Jatobá. Ele e os romeiros desafiavam leis naturais sertanejas, e tudo o que era determinado pela providência, feito carma, crentes no valor da visitação às igrejas monolíticas.
Corria o trem. Os passageiros testemunharam o gado no pasto, uma casa velha abandonada, uma mulher com um pote na cabeça. Num povoado pelo qual passava o trem, homens armados de enxadas, enxadões, pás, picaretas.
Uma jovem de cócoras, cabelo ao vento, vestido de chita enterrado entre as finas coxas, cavava na arreia com as mãos nuas. A quenga de coco abria a cacimba no leito do rio. Ela olhava o trem que se sacolejava nos trilhos. Passava o trem; ficava a imagem da moça de cócoras.
Corria o trem nos trilhos. Nas janelas, longe se avistava angicos, aroeiras, catingueiras, imburanas. Voavam beija-flor-de-gravata-vermelha, soldadinho-do-araripe, arara-azul-de-lear.
Eram caçadores comuns? quis saber uma passageira, no trem.
Não, dona! disse-lhe. Caçadores de homens, dona, que atravessavam as tripas do mato.
O trem diminuiu o ritmo; cansado, o cavalo de aço quase parou. O padre Velho viu pela janela do trem o povo ao lado da linha que apedrejava um homem.
Era o cangaceiro Energúmeno! disse o bilheteiro.
Por que não o entregaram às forças? perguntou.
Ele era acostumado a pilhar a região, padre! disse-lhe.
Desfalecia, ensanguentado, Energúmeno sob os gritos e a fúria do povo. O trem se foi com um apito estridente, enquanto cuspia fumaça.
Eram três cangaceiros, padre! disse o bilheteiro. Contundente e Obsceno enfiaram-se no mato. Aqui, nesse sítio, ou se respeitava ou se entrava na peia.
E aquele velho esfarrapado que tentou desamarrar o cangaceiro morto?
S. Razoável! respondeu-lhe. O pai do cangaceiro Energúmeno. O pai dele nasceu, cresceu, formou família e envelheceu aqui neste sítio.
Vivemos num período, disse um passageiro, onde nada mais importa.
É mermo! concordou outro passageiro.
Num período onde bosta não é mais bosta! concluiu.
Voltou a correr o trem. O padre Velho parecia ouvir a voz imperiosa do Cel. Dr. Cicrano no alpendre de sua Faz. Roída e não o atrito do trem nos trilhos.
Parecia não ter fim o tempo da caça a homens como se caçassem bichos. Um bando andava nas sombras, e avançava em direção à Roída.
A peçonha caminhava lado a lado de mulheres e homens que aprenderam a sobreviver com a filosofia da coragem. Na Faz. Roída:
O matrimônio é um dos sacramentos indissolúveis! foi a resposta do Cel. Dr. Cicrano ao ser questionado por que não se casa com a alfabetizadora Anistia.
Doutor! admirou-se o padre Velho. Como vai ficar a moça, coronel?
Moça?! esboçou um riso de canto de boca o Cel. Dr. Cicrano.
A menina já por duas vezes foi mãe, doutor.
Que ela faça as vezes de boticária! disse-lhe o Cel. Dr. Cicrano imperioso. Deixe-a lá na botica, padre.
As pedras sob as alpargatas de cangaceiros eram brasas. Andavam sobre os lajeados, evitavam deixar rastros.
Cangaço era negócio igual a qualquer outro, padre! disse o Cel. Dr. Cicrano ao padre. Vivia-se pelo lucro à moda do sistema.
...?
No bando, padre, um homem não era dono de outro.
...?
As pedras soltas eram evitadas pelo bando próximo à Roída. E os galhos nunca eram quebrados.
Corria o trem.
O que mantinha vida era o espírito de predador em cada membro em cada subgrupo de cangaceiros, demonstrava o Cel. Dr. Cicrano ao padre. A morte era tão trivial quanto a seca nos olhos e a empoeirada na pele.
O trem apitava. O padre fechou o livro.
Carregados de mantimentos, armas, munição, água nos cantis. Os casais de cangaceiros observavam o comportamento dos cãeschorros atentos à quebra da normalidade durante a jornada.
São João. Colhia-se quiabo e abóboras; só sair à porta de casa e apanhar, e comer. As galinhas poedeiras muitas àquela época do ano.
Havia montinhos crescidos no tórax da terra como se fossem colinas de leite e mel. As chuvas cessaram, galinhas minguavam. Aí, a lua aparecia enorme feito uma melancia adubadas com esterco de vaca, no fundo de casa.
Cangaceiros eram uma mina inesquecível e inesgotável, nas reportagens das periodistas Ênclise, Mesóclise à Próclise. Vivia-se de fugas, da vingança, da fascinação pela vida tão brilhante quanto estrelas no chapéu, ouro nos alforjes, pedras preciosas nos dedos, fogo nas armas, e o brilho no fio da lâmina delgada que buscava a saboneteira dos adversários.
A reportagem mostrava a cara do cangaceiro transformada numa massa de pão, pinicado o corpo a punhais do tamanho de espadas. Amarrado com embiras e dependurado numa aroeira, queimado. Em cercas baixas de pedras soltas cobras dormiam.
O luar dava uma cor clara às copas dos umbuzeiros. Conveniência, que os jornais lhe deram o epíteto de Cangaceiro do Rei, era o único no bando que usava uma corda de crina de cavalo.
Com a corda, Conveniência estrangulava adversários. Estrangulou Zé das Cruzes, que alguns jornais chamavam de Caçador de Cangaceiros, outros de O Homem Que Virou Lenda.
O olhar de Conveniência, na reportagem de Próclise, Mesóclise e Ênclise, era singelo, uma criança. Ele não representava o que se dizia dele.
Zé das Cruzes urrou desde o instante em que a lâmina de Conveniência foi do queixo à virilha. A linha de crina de cavalo fechou a abertura. Conveniência lavou as mãos, o cangaceiro Menino vestiu o gibão de couro no corpo de Zé das Cruzes.
Reportagens de Mesóclise, Próclise e Ênclise noticiavam que a Síndrome do Cangaceiro era viver sempre com fome, sempre com sede. Eles carregavam a maldição do rei Tântalo. Não sabia o povo sertanejo como viver sem referir-se a eles, contar as suas terríveis histórias e as suas fabulosas estórias qual a saga renovada do antigo rei Odisseu de Ítaca no ciclo da História.
Tântalo, o rei maldito, que enganou a morte e ludibriou os deuses, a ele lhe foi dado o castigo divino de que, apesar de próximo aos alimentos sólidos e à bebida, nunca mais chegaria à boca e ao estômago o elixir à vida. E Tântalo sentiria sede e fome por toda a jornada ainda por viver, por ter enganado a morte.
Nas entrevistas às repórteres Mesóclise, Próclise e Ênclise, Conveniência dizia-se inocente. Eram perguntas delirantes de Mesóclise, Próclise e Ênclise, e respostas delirantes do cangaceiro Conveniência.
Um cangaceiro desertor, o cangaceiro Conveniência disse às repórteres, havia gravado a ferro a cara dos desafetos com ferro de ferrar gado. E em poucas horas de prosa, ele fugiu temendo ser costurado linha de crina de cavalo.
Não parava de correr o trem. Viajava um passageiro com o seu embornal adornado por símbolos de Dom Sebastião, perdido na África quando saqueava Marrocos com o seu exército.
Pleonasmo era o maquinista. Parou o trem inesperadamente. Havia uma ameaça nos trilhos. O medo era ser atacado pelos cangaceiros.
E foram tantos tiros em cabras
Era o enxame abelhas de fogo
E as balas zuniam nas orelhas
O papo-amarelo cortava folhas
E nas páginas dos Evangelhos
Um pecador corria e tropeçava
Dizia três vezes não ter pecado.
Toca o trem, Pleonasmo! gritou no vagão um passageiro. Tinha no chapéu de couro a flor de lis, outro ao lado a cruz de malta. E a fisionomia do passageiro com essa flor de lis lembrava o Cel. Cordeiro da Paz Carneiro assassinado, disse o padre Velho. Devia ser parente do coronel, um devoto das igrejas monolíticas.
Os jornais trouxeram assassinos sem mandantes do Cel. Cordeiro da Paz Carneiro. Acertaram-lhe a cabeça, espalharam-se os miolos. Os cangaceiros, na reportagem que o padre Velho lia, quiseram extorquir o caçula do Cel. Metonímia, chefe do município de Ui; sobrinho do Cel. Zeugma, do município de Semântica Tardia; neto do Cel. Silepse, do município de Léxico Encantado.
O padre Velho tentava dobrar as páginas. Violentamente, invadia o vento pela janela do trem e ameaçava carregar as páginas do jornal.
Jornais acompanhavam notícias do mundo volante, do mundo cangaço. Cada edição, os leitores à busca de testemunhos fotográficos, depoimentos de vítimas e histórias sobre combates na caatinga.
Os olhos do padre Velho foram atraídos à coluna da periodista Mesóclise.
Esse fenômeno do cangaceirismo, escreveu Mesóclise, singular no Brasil, não havia parâmetro em qualquer parte do mundo. O padre Velho rio um rio de dúvidas das duas linhas que destacavam a informação sob o título da matéria. E seguiu com a leitura da várzea jornalística.
Os apelidos que os cangaceiros recebiam ao serem sugados pelo banditismo era uma espécie de contrato tácito. Este contrato não escrito nem assinado, e mesmo assim cumprido ao pé da letra, seguia os mesmos modos do contrato de adesão porque a outra parte não mudava as cláusulas e aceitava-o como contrato.
Os olhos do padre Velho, acostumados à injunção, foram em frente. Era o hábito do padre desde a época de Coimbra, Portugal, injungir. E ele dizia que na instrução o povo aprendia mais fácil qualquer receita.
Não existia banditismo social, como queriam alguns, existiam as cordas e os títeres dos coronéis. Antes de tudo, o cangaceiro como marionete era de alma mangadora, que mangava tão completamente que chegava a ser mangação o mangar mangado de toda a gente sua vítima nas cidades e fora delas.
O padre Velho, no balanço do trem, lia as linhas na coluna de Mesóclise.
Por que entrar no cangaço? Porque ganhavam-se poder e dinheiro.
Plantações foram destruídas nas guerras entre famílias vizinhas, seguiu o padre a leitura, que se tornaram rivais. Dr. Lombroso desenvolveu uma teoria sobre o homem delinquente.
Nas feiras em cidades ou vilas circulavam cangaceiros que lutavam com as forças volantes. O mundo era assim desde que o primeiro macaco atirou uma pedra noutro macaco e o eliminou do bando.
O padre Velho não largava um livro qualquer sobre um tema qualquer, um jornal, que trouxesse notícias de longe, usava-o como apoio. Dizia-se nu quando não trazia uma pasta à mão ou um guarda-chuva, o próprio cajado ou chapéu. A mão estava sempre ocupada fosse com o que fosse; no máximo, uma das mãos ficava vazia.
Corriam os olhos do padre sobre o jornal coalhado com notícias sobre os cangaceiros. O trem parava de estação em estação. Os romeiros, que embarcaram em Piranhas, Alagoas, em direção às igrejas monolíticas, entoavam hinos.
Feito artistas em apresentações de circo, escreveu Próclise, cangaceiros demonstravam poder em suas penas e em suas cores. Quão rei no auge de sua nobreza. Quais machos que se enfeitavam às fêmeas, no reino animal.
Olhasse o pavão, escreveu Próclise em seu artigo, olhasse o galo, o leão em savanas africanas, os passarinhos que faziam a sua corte ao emitirem o seu canto, os seus gestos, os voos na dança do acasalamento. E o pirata também se enchia de ouro e pedras preciosas.
O cangaceiro alterou o seu formato, ficou diferente. Tornou-se dismórfico. O padre Velho parou em dismórfico e se deliciou com as suas injunções. Dava ao substantivo o conceito biológico das formas. Elaborava novo artigo futuramente publicado no semanário O Liberdade de Expressão.
O terno de linho branco, escreveu a periodista Ênclise, os sapatos de bico fino, a camisa engomada, gola alta, a gravata. A vestimenta transformava o chefe do cangaço em fazendeiro. Os óculos com aros de ouro e lentes escuras.
Via o padre Velho as imagens publicadas no jornal. A pose do coronel, proprietário de gentes e de terras, perdia-se nos mapas dos textos jornalísticos. Os coronéis viviam seis meses na Europa, seis meses no sertão.
E os cangaceiros representavam diferentes arquétipos. Os tipos bandidos e heroicos, aos heróis e aos bandidos os cangaceiros eram associados.
Naqueles meses, a secura do Sol bebeu todas as águas dos rios, riachos e açudes em torno de Santana. O Panema expôs toda a sua areia, todas as suas pedras. Cacimbas eram rasgadas pelas cuias das vendedoras de potes d’água, dos vendedores de ancoretas d’água.
O rio era violado pelas mãos ávidas, pelas bocas sequiosas. Foi nesse rio seco que o padre Velho e Esperança-de-Nunca-Mais-Empacar atravessaram em direção a Pão de Açúcar.
Nórdico era um criador de porcos na beira do Panema. Passava Nórdico nos adjuntos de casebres construídos às margens do rio e sumia ladeira acima num projeto de rua paralelo ao Panema. Nos dias de feira, Nórdico madrugava. Os seus vizinhos ouviam os protestos sem socorro dos porcos da vez mortos pelo criador. Antes das primeiras luzes da manhã, Nórdico empurrava um carro de madeira de tração humana com pedaços de porcos ao mercado.
Fulô da Vida Fácil era uma criatura brincalhona desde o princípio. Ganhou este nome de Fulô do primeiro namorado que lhe prometeu casamento e ingressou no cangaço aos 13 anos, dele nunca mais se ouviu falar. Fulô ficou grávida, perdeu a criança, foi expulsa de casa, caiu na vida, passou de mão em mão, acabou Fulô da Vida Fácil. Vivia nas ruas de Santana, sonhava em reunir criaturas iguais em sina. Conheceu uma da Palmeira, que concordou em viver no sertão, veio outra do Ouricuri, que se uniu a elas, abriram um bar numa ponta de rua.
Onário tinha um armarinho em Santana. Vendia miudezas. Passava a noite na cachaça, disse Onário, porque era um eterno combate a todos os alambiques de Pernambuco a Alagoas. Fechava os olhos, disse Onário, revivia a Rota Verde no litoral alagoano até chegar ao Recife. Tombavam os coqueirais com o bater das ondas e, no vaivém que se eternizava, os cocos caíam, rolavam na areia, disse Onário, que interrompia a viagem e enchia a cara com Aguardente, uma aglutinação, numa quenga.
O rábula Tudão deixou a cidade, fazia tempo. Um dia, foi descoberto Télos, que recebeu no Natal, de seu pai, toda a coleção Ciências Jurídicas de Vade Mecum. Como a cidade vivia na santa paz e Télos levava uma vida pachorra, ele mergulhou na compilação de todos os códigos, de todas as normas, de acórdão, de todas as jurisprudências. Uma verdadeira traça de livros. Por tanta dedicação às leis, Télos foi ovacionado com o título de causídico. Por iniciativa do padre Velho, de quem Télos era afilhado, todos em Santana se referiam ao causídico como Vanire Contra Factum Propirum.
De manhã cedo, na porta do açougue, Bucho vendia cocada de coco e de leite ou de amendoim, e quebra-queixo. À tarde, Bucho passava nas ruas com um tabuleiro e anunciava com a voz de tenor os doces que fazia em casa, no outro lado do Panema, e com a voz de falsete agradecia o dinheiro com a venda dos doces.
Silepse, filha única do Cel. Silepse, chefe no município de Léxico Encarnado, foi residir em Santana, na casa de uma tia, irmã do Cel. Silepse. Na mudança de ares, Silepse trouxe de Léxico Encarnado o seu gênero discordante entre feminino e masculino, a sua discordância entre o singular e o plural, e a sua discórdia que envolvia o sujeito na terceira pessoa e as verbas que o seu pai, o Cel. Silepse, lhe mandava sempre na primeira pessoa.
Com as iniciativas de Bé do Algodão, o parque fabril em Santana em crescimento vendia móveis a velha Salvador, disse Silepse, que gerenciava a fábrica. Pela primeira vez na história da cidade, ela disse, a venda aumentou e cresciam a cada dia. E todos os funcionários estamos satisfeitos.
Grafema, que vivia com Fonema, era envernizadora de móveis na fábrica de Bé do Algodão. Fonema era tímida, mal falava. Grafema era expansiva e falava pelos cotovelos. Se Fonema falasse o som de /p/, por exemplo, Grafema já antecipava com /pera/; caso Fonema dissesse /b/, e usasse assim o menor som da fala com o poder de diferenciar o significado da palavra que tentava dizer, Grafema adiantava-se e dizia /boga/.
Catafórico era carpinteiro, trabalhava na construção de casas, casarões, tornou-se marceneiro na fábrica de móveis de Bé do Algodão. O marceneiro Catafórico sempre fazia referência a algo futuro, algo, por ser homem de coração pio, a surgir à frente da oração.
Na fábrica de móveis, as irmãs que vieram de Variações Linguísticas, eram vocalistas no Grupo Dá Dó e projetistas. Uma era Diatópica, e tinha um pé na Geografia; a outra Diacrônica, esta era devotada à História; Diastrática, já preferia grupos sociais; e Diafásica, às vezes falava de maneira formal, às vezes informal.
O encarregado pelas vendas de móveis era Paralinguístico. Escolhido pela qualidade vocal, e das pausas, risos, ritmo da fala, e até mesmo pelos gritos de “Não quero ver ninguém sentado!” Cinestésico era assistente de Parlinguístico; foi indicado por causa dos movimentos e expressões faciais.
Silepse, a contragosto do pai coronel e da tia irmã do pai, começou a suspirar por Bé do Algodão. Um viúvo que visitava o travesseiro e os sonhos de Silepse a cada noite.
Saiu o padre Velho de Santana montado em seu burrico. O rio seco permitiu-lhes a travessia. Deixou o animalzinho em Pão de Açúcar e rumou por água rio abaixo até Piranhas. Na estação férrea de Piranhas, o pároco santanense viajou na tripa de aço em direção a Olho D’água do Casado, e de Olho D’água do Casado a Talhado, e de Talhado a Pedra, de Pedra a Sinimbu, e de Sinimbu a Moxotó, e de Moxotó a Quixaba, e de Quixaba a Jatobá.
Os vagões gemiam com gente de todas as classes. Os derradeiros vagões transportavam os animais. Naquele dragão de aço, a mercadoria e o povo integravam Alagoas, Pernambuco e Bahia.
Desde a época do café, o Brasil soltou a fera de aço iniciada pelas mãos do Império de D. Pedro II. As cachoeiras do São Francisco impressionaram o Imperador. O Rio, ele dizia, jamais perderia a beleza nem a Corte.
No trem, os romeiros cantavam hinos piedosos, traziam pedidos, levavam terços, crucifixos. O padre Velho alternava as leituras ora jornais, ora livros.
Nos becos sujos do Panema, entre mato, pedras grandes e pequenas, esterco de gente e bicho, urtiga, buracos no barro, na lama, adiante monturos, cacos de vidro, Glória desceu com a trouxa de roupas na cabeça. Ia Glória cavar uma cacimba no leito areento do rio, esperar água, lavar roupa suja com a água salobra que minasse na boca de areia grossa.
Mais tarde, Glória escalaria os becos de Santana com a trouxa de roupas lavadas. Glória encontraria com o cortês Mil-Ciências com oito ancoretas num par de burros. Chegaria Glória à Rua do Sebo, passaria na frente das casas, subiria outros becos com o fardo de roupas limpas na cabeça.
O padre folheava o jornal.
O Brasil colônia enforcou o cangaceiro Cabeleira nas ruas do Recife, disse a matéria no jornal. O carrasco escanchou-se nos ombros de Cabeleira.
O cangaceiro agia como soldado da fortuna, disse a reportagem nas mãos do padre Velho, e recebi salvo conduto. E o jagunço não era o tipo étnico, como queriam os influenciados por Euclides. Jagunços atrelados ao mando, soltos os cangaceiros. Poucos amavam de fato o seu próprio destino.
Em Santana, Longa Manus trabalhava na feira com rapadura, tapioca com coco, bolo de milho e garapa. Nos becos sem pavimentação, batia sola Baronato, que era seleiro, costurava arreios de couro, cortava e fazia embornais, xobois.
O padre abandonou as folhas de jornais e retornou às folhas do livro. Corria o trem nos trilhos em direção às igrejas monolíticas.
Voltou o padre Velho ao jornal. Na prática da agiotagem, na vida nômade, trouxe a reportagem de Ênclise, Próclise e Mesóclise, cangaceiros ameaçavam as vítimas, delas exigiam contos. E, preso ao corpo, eles levavam de um Estado a outro o que conseguiam durante fugas perpétuas e trocas de tiros com as forças volantes.
Lia. O excedente nas pilhagens, quase sempre em contos, emprestava a juros aos fazendeiros às vezes, às vezes os cangaceiros associavam-se a eles em terras e gado.
Em Santana, o sapateiro Luzerna engraxava sapatos de porta em porta. O ferreiro Ptá malhava ferro na bigorna, na Rua do Cachimbo Eterno. Santana era a Capital Mundial do Coentro Verde.
O padeiro Eufemismo comprou o título de coronel e vivia em Maceió onde negociava couro para além do Atlântico. Temistocleia, mulher do Cel. Eufemismo, passava seis meses na Europa, seis meses no Brasil. Cel. Eufemismo puxava os suspensórios plaft! sobre o ventre plaft!
Esse mundo encantado do cangaço existia de verdade, lia o padre Velho a reportagem, e caminhava na beira do rio indo pelas águas do São Francisco. Percorria léguas por nove Estados. Corria o trem nos trilhos. As mãos do padre balançavam com o atrito da caixa de ferro. Guerreava, saqueava, bebia, fumava o cangaceiro, dançava, quengava sem intervalo.
Em Santana, o homem desiludido cercava-se deste adjetivo e bebia, e se embriagava, e caía nas ruas de barro e pedras, e ficava caído, e acordava tarde da noite, e os transeuntes passavam por aquele adjetivo bêbado sem reconhecê-lo. Aurora oferecia o seu trabalho de porta em porta, fazia qualquer trabalho por um prato de comida.
As peripécias dos cangaceiros brilhavam às crianças quais privilégios, e as suas estórias engravidavam a terra. Eram elas que vinham fascinar o espírito de criança preservado em adultos.
Mulheres e homens eram sem rei, sem moral, sem pecado, sem lei, sem parada. O cangaço era a nova odisseia. E qualquer criança que gostava de ouvir estórias antes de dormir se encantava com esse mundo de cangaceiros e forças volantes que saíam de Santana, que saíam do quartel, atravessavam o Panema.
Os corpos sem vida apodrecem na terra. Guerreiro morto apodrecia o seu cangaço deixado à rapinagem das aves que limpavam a carniça no mundo.
Lia o padre Velho. Os cangaceiros nunca foram expatriados das famílias. E o poder do bandido tornava o cangaceiro um exibido.
Um útero doente gerava seres doentes. O cangaceiro Conveniência, disse a reportagem no Jornal do Ser Tão, era cangaceiro autoritário que falava baixo; no bando, quase não se ouvia a voz seca a espremer-se de sua boca. Exposto nos noticiários como matador da própria mãe e, não satisfeito, assassinou o pai.
Vestido em folhas secas com estética própria, o cangaceiro brilhava qual feixe de luz, com chapéus de couro de veado, abas largas assombreavam o corpo, as abas quebradas ornadas de estrelas, amuletos que expeliam inimigos na luta. Gente estranha, esquisita, que personificava o maior acontecimento na terra.
A criança crescia com o desejo de tornar-se cangaceira. Em atravessar o sertão a pé, em morrer de sede se não encontrasse um pé de umbu.
Umbuzeiros eram oásis que lhes concedia as batatas-d’água. Espremidas pelas mãos sujas cujo líquido escuro umedece a secura das léguas vencidas a pé.
O trem, que saiu do lado esquerdo do São Francisco, resfolegou nos trilhos a engrenagem ora rápida ora lenta e fê-lo chegar às igrejas monolíticas. Bufava o cavalo de aço.
Os passageiros, tomados pela graça, avistam das janelas do monstro de aço as igrejas monolíticas. Com fervor, retomam os hinos de louvores às igrejas monolíticas. E o padre Velho, espremido pela multidão, desce do trem sem tocar o solo.
O Liberdade de Expressão começou a chamar Santana de solo sagrado, e ficou. Cada vez que se referia à cidade a chamava de Solo Sagrado. Não era mais o caso de usar o seu nome, apenas o topônimo. E, assim, Santana passou a ser Solo Sagrado, e de Solo Sagrado veio a ser Solossagrado.
As pessoas comentavam que o primeiro artigo no semanário O Liberdade de Expressão a referir-se a Santana como Solo Sagrado foi assinado por Polissíndeto. Depois se descobriu que o texto era do padre-cura; ele negava, o povo dava-lhe o benefício da dúvida. Santana ficou como Solossagrado. Sempre que se referia ao lugar, ninguém mais falava Santana, dizia simplesmente Solossagrado.
Ah, vieste do solo sagrado? alguém perguntou ao padre Velho, que caminhava na multidão.
Nasci lá! disse o padre.
Um orgulho ser de Solossagrado, não era não?
Todos ficaram deslumbrados diante das igrejas monolíticas. Era como se encontrasse cara a cara com o mistério da vida.