Oquintal da minha casa fazia limites com vários pés de mulungus ou eritrinas, enfileirados, formando uma cortina em um dos lados do cercado de Seu Antonio Carneiro. Eram árvores frondosas com mais de oito metros de altura, as quais, que entre outras utilidades serviam de abrigos para os pássaros. Muitas vezes eu me acordava com os cantos alegres e felizes dos galos-de-campina e das rolinhas-fogo-apagou num concerto regido pela natureza; minha mãe logo se despedia do seu leito naquela missão de todas as manhãs, para catar alguns cavacos sob as copas daquelas árvores tão significativas e, em seguida, acender o fogo para a nossa primeira refeição do dia, enquanto meu pai permanecia na cama num sono profundo denunciado pelo seu ronco próprio e característico. O atrito do milho no ralo de alumínio, bastante desgastado, comprado na feira de Santana e o choro pedinte da minha irmã mais nova completavam a sinfonia matinal. Em seguida todos já estavam acordados, minha mãe acabava de preparar a mesa, meu pai ocupava o seu lugar costumeiro, enquanto a meninada assumia o espaço liberado pela velha mesa de maracatiara. A mesa estava farta, o velho cuscuz soltava fumaça exalando o cheiro do milho; uma tigela de leite cozido da freguesia do gado de Seu Abílio Pereira; quinze pães aguados ou pães d’água comprados por papai logo cedo ao padeiro Valete; meia dúzia de ovos de galinha de capoeira e uma moquequinha de peixe fidalgo, pescado no Riacho do Bode, um dos pratos prediletos de mamãe, conferiam a fartura da nossa primeira refeição da nossa humilde família.
Momentos depois, os filhos mais velhos de Seu Plácido e Dona Nilce se preparavam para as aulas no Grupo Escolar Padre Francisco Correia, os mais novos ficavam em casa na companhia de mamãe. Como a minha aula se dava na parte da tarde, no turno da manhã eu me ocupava assistindo aulas particulares ou de reforço, na Escola de Dona Floraci Limeira, Dona Flora, em frente ao Grupo Escolar. Vez por outra eu matava aulas para jogar bola ou caçar passarinhos. Quase sempre eu escondia a baleadeira (peteca) junto ao tronco de um pé de mulungu e, sem que meus pais me vissem, disfarçadamente, eu ganhava o cercado. Passava horas inteiras afugentando os pássaros à sombra dos mulungus. Ali naquele pedacinho de céu em contato com a natureza eu não percebia o tempo passar. Levava alguns momentos catando as sementes vermelhas do mulungu, para traçar desenhos de figuras ou animais no piso de cimento de nossa casa.  Mas, o progresso, esse mal necessário que atinge a todos ironicamente, invadiu paulatinamente os meus espaços. Novas ruas e avenidas foram surgindo sufocando os pés de mulungus. Os meus tempos de criança sucumbiram com a saga do homem em querer poder tudo. Hoje quando passo na avenida onde semeei as estórias de trancoso e as brincadeiras de rodas na essência da vida, olho para a casa onde atualmente reside Dona Izabel viúva de Expedito Sobreiro, mergulho no tempo e vejo aquelas árvores frondosas embaladas pelo vento, com suas copas cortejadas pelos galos-de-campina e as rolinhas-fogo-apagou saudando as manhãs com seus cantos de felicidade nos galhos nos saudosos mulunguzeiros.

Crônica publicada no livro LEMBRANÇAS GUARDADAS (SWA Instituto, 2022 p.185-186)