CEUTO E ERAUDO
ContosPor Marcello Ricardo Almeida 13/10/2025 - 10h 30min0
Houve uma época em que um vírus atacava a córnea humana e a privava de uma das visões. Um dos livros jogados na biblioteca dava conta de que, após a eliminação do vírus, alunos perderiam o interesse pelo conhecimento.
Chegou o futuro do qual se ouvia falar.
A escola tinha por gênese a matéria. Por mera determinação de referência dêitica, exceto quem fosse da Pedagogia, professores eram identificados pela matéria. Se lecionava Ciências, era identificado na escola por Ciências.
Chamasse rápido Ciências aqui em minha sala! exigia Supervisão, xotou Tutor por longas e estreitas passagens, que passou de marcha comum a marcha atleta e terminou na corrida de 100 metros. A escola não andava sem Português. Isso era a cara de Matemática! E quem mexeu nas bolas foi mesmo Educação Física. Nossa...! Isso aí cabia às aulas de Ensino Religioso? Fosse falar com Matemática... E por que não procurava Português? Hoje, não vi História na escola nem Geografia. Sociologia veio hoje? Hoje não era dia de Sociologia, era de Filosofia. Dissesse a Arte que não pintasse o sete. Encontrada trôpega a Base; Português, meio grogue, falava só de leitura, escrita e comunicação; História misturava passado, presente, futuro sem que se chegasse a uma compreensão lógica; Geografia triturava em grandes nacos o que fosse espaço geográfico e o que fosse territorial; Arte lambuzava-se, distante de expressão criativa e cultural; Educação Física perdeu o desenvolvimento motor, perdeu a saúde e andava aos frangalhos; Matemática afundou-se nos números, perdeu-se nas operações e navegou perdida em conceitos fundamentais de geometria; Ensino Religioso, que era facultativo, não sabia mais se abordava crenças, talvez valores ou quem sabe valores e crenças; Sociologia foi inundada por estruturas e enxurradas de relações sociais lhe estragaram toda a mobília com a última chuva; Ciências se foi em busca do mundo natural; e Filosofia, que não foi mais encontrada na porta da escola, Tutor disse tê-la visto, brincava com pensamento crítico a contragosto da reflexão ética.
Ceuto, no sexto ano do fundamental dois, seguia a sequência didática:
– Morfema, gente, o morfema, gente. Vamos dividi-lo em categorias? Ó, gente, que tal dividir o morfema lexical do morfema derivacional?
O pânico estabelecido na sala. Se alunas competiam cambalhotas, alunos maiores carregavam os menores nas costas. Gritavam até perder a voz os que estavam sentados. Ceuto estático diante do quadro:
– No morfema lexical, o radical carrega o significado principal.
A visão era da antessala no dia do Juízo Final.
– No morfema derivacional, afixos como sufixos e prefixos são criadores de novos léxicos.
A turma transformou as mesas em tambores. Ela comunicava-se por sinal de fumaça e batidas de tambor.
– Gente, gente, gente!
Bumbum! Toque-toque. Corre-corre. Gritos de vozes. Mais pancadas nas mesas. Mais gritos na sala de aula. Correrias. Pega-pega. Devolva minha caneta aqui na minha mão, filho da...!
– Gente, morfema é a menor unidade linguística. Gente, morfema é algum pedaço da palavra com algum significado. Gente, morfema tá presente...
Bumbum! Tuntum!
– Ó, gente! Assim não dá, assim não, assim não tolero...
Tuntum! Bumbum.
– Raízes e afixos, gente. Ei! ecoou um rouco e demorado aboio de Ceuto. Geeeeeenteeeeeeee, morfema pode existir sozinho como forma livre de palavra completamente com sentido.
Tá! Bumbum! Tabá! Tabé! Tabi! Tabó! Tabu! Bumbum!
– E morfemas presos, gente, são ligados a outros se quiserem fazer algum sentido.
A sala de Ceuto em pandarecos. As mesas deitadas, as cadeiras jogadas, o material espalhado, as folhas rasgadas, lápis quebrados. Os alunos aos gritos perseguiam colegas, tropeçavam, caíam, levantavam-se, corriam em busca de orifícios entre si. Na turma ao lado, peças de roupa eram usadas como adereços que fingiam gravidez e criança recém-nascida. Na turma de Ceuto:
– Vocábulos gramaticais, gente, vocá...! Com os morfemas lexicais, gente, pense em radical, que é a origem da escola. O morfema também se deriva das aulas pelos afixos a quem se reconhecem como prefixos e sufixos. Gente, acaso entendeu? Morfema flexional, por sua vez, gente, aí, chegamos às desinências; elas são vistas em tempo, número, modo e gênero, gente. Geeentee...! Ó gente! Não se esqueça da vogal temática.
– Ceuto.
– Vogal temática faz ponte entre o radical e outros...
– Ceuto!
– ...pedacinhos em determinadas palavras.
– Ceeeeeutoooo!
– Quê! intercedeu. Por que não grita mais baixo?
– Posso ir no banheiro? Poço. Vou.
– Ir ao banheiro?
– Sim! correu à porta da sala. Fui!
– Sexto ano, vai cair alofone na prova. O que é alofone, Rafael? Não sabe. O que é, Bárbara? Ih! Sexto ano, alofone, gente, falei 1001 vezes, é cada, ouviu, uma coisinha assim do fonema. Ora o alofone é dental oclusivo, ora o alofone é dental africado.
– Quê!
– Eu falei variante alofônica. Não falei? Falei. E falei variante subfonêmica e falei variante combinatória e falei variante contextual e falei variante posicional e falei variante condicionada e falei variante fonêmica e falei variante alofônica.
Bumbum! Babá! Tuntum! Toque-toque. Tique-taque. Zum-zum...
– Os fatores...
Plique-plaque!
– Os fatores...
Plaque-plique!
– Como eu dizia, disse Ceuto, os fatores individuais...
Plinque-planque!
– Os fatores... Os fatores geográficos ou estilísticos ou soc...
Plique-plaque! Plaque-pluque!
– ...iais...
Plique-plaque-plunque-plaque-plique!
– Provoca articulação apicoalveolar, aspirada etc.
– Como estão todos aqui?
– Como de costume, Direrrepilo! disse Ceuto como a vendedora de queijo que, mesmo rançoso, sorria.
– Aprendendo direitinho?
– Como a queijeira mesmo com o queijo rançoso significa o seu enunciado incompleto na ausência de verbo que quebra as pernas do período.
– Como!
– Como uma conjunção comparativa, Direrrepilo.
– Ah!
– A é artigo definido feminino, Direrrepilo, e faz papel de adjunto adnominal do substantivo.
– Que substantivo?
– Queijeira!
– Queijeira?
– Provável núcleo do sujeito de uma oração elíptica.
– Elíptica?
– Oculta.
– Oculta?
– Uma locução adverbial de concessão, no caso, indica uma circunstância contrária.
– Contrária? com caras, bocas e Libras.
– Não, não. Fique tranquila. Não impede a realização da ação não dita. E o ranço do queijo é do adjetivo rançoso do adjunto adnominal queijo. O núcleo é como, o sintagma nominal é a queijeira, o artigo determinante é a, e também o núcleo é queijeira, sintagma adverbial de concessão, observe, Direrrepilo, é o mesmo com o queijo rançoso, e com é a preposição, o queijo rançoso é sintagma nominal etc. Mas importante, importante mesmo, Direrrepilo, é a variante fonética uvular; aspirada também, e alguns preferem apicoalveolar em algumas regiões das continentais terras brasileiras.
– Vumbora, Ceuto!
– Vumbora, Direrrepilo!
– Boa aula! disse e saiu da porta da sala onde bloqueava qualquer acesso, e foi permitido o triunfante e sorridente retorno do sol. Voltaram as onomatopeias mais fortes e as fortes, mais fracas, fracas, que se distanciaram dos fonemas, dos artigos determinantes, do núcleo, do sintagma adverbial de concessão na aula de Ceuto:
Bumbum! Babá! Tuntum! Toque-toque. Tique-taque. Zum-zum...
Ceuto retomou ao morfema com este comentário:
– É o peso da responsabilidade que se afasta da nossa realidade, gente!
A sala de aula, que parecia um mosteiro trapista, retornou à batalha, voltou a ficar de pernas no teto.
A comunicação sincrônica não parava de circular nas máquinas manuais:
“Eva não para de gritar em minhas aulas. Só ver me aproximar, começam os berros. Direção, faça alguma coisa! Como posso trabalhar? Inferno!”
“Povo maldoso e mal-educado. Comeu todo o meu bolo de chocolate, que havia deixado na geladeira. Não merecia abrir a porta da geladeira e encontrar apenas as penas do bolo no papelão. Que papelão! Quem fez isso, por favor, se retrate. Coisa feia! Vou denunciar à SEMED.”
“André derramou água na sala de novo.”
“Alguém terá que dar jeito na bagunça da sala: não consigo abrir a boca.”
“O cabo HDMI foi roído pelo Chico. Há outro que eu possa usar?”
“Sara não tá disposta. Acordou tonta. Não quis almoçar. Avise aos pais.”
“Simão tá sentado no colo de Lídia. Ela mima demais. Ele dorme e ronca.”
“Maria não para de chorar. Alguém sabe dizer o que houve com a Maria?”
“Tetê recusa-se a fazer a prova!”
“Tadeu não para de correr atrás do Tiago.”
“Alguém avise aos pais do Bartolomeu que vem à escola brigar.”
“Débora insultou a colega e desafiou minha cátedra.”
Em uma outra sala, porta a porta com a sala de Ceuto, eram birra, porrada e bimba. Com o sexto ano, o morfema subiu ao telhado.
Eraudo atualizava-se nas redes: não ficava muito tempo longe delas. Esse novo 15, facultativo ou feriado? A sala de Eraudo ao lado da sala de Ceuto.
O sexto ria, corria, brincava. Usava o boné alheio como peteca. Avessava a mochila do colega, enquanto ele ia ao banheiro. Derramava tinta na mesa, cola na cadeira.
O ar-condicionado a pleno vapor. As janelas abertas. Os papéis voavam, ganhavam vida.
– Que horas, Ceuto?
– Não sei.
– Não tem hora, porra!
– Não é de sua alçada.
– Ouviu, turma! Ceuto tá com ameaças sobre minha ossada.
Correrias, gritos, gargalhadas. A colega puxou a parte inferior do uniforme da colega e a deixou à mostra a luz do dia.
Na sala de Eraudo:
– Posso fazer a chamada?
Os alunos de Eraudo apostavam na dissonância cognitiva e mordidas nas mãos uns dos outros, depois cobriam as mordidas com tinta de caneta. Pintavam os corpos com canetas à moda do momento, tatuavam-se nos braços, rosto e nas pernas.
– Permissão, Eraudo?
– Permissão pra quê?
– Sair.
Eles não suportavam as aulas de Eraudo.
– Sair?
– Encher a garrafa d'água.
– Outra vez?
– Bebi.
Gritavam a perder a voz. Alguns corriam e exploravam todos os cantos da sala, voltava à mesa com o lixeiro na cabeça. Outros dormiam sobre os braços. Cinco sentados na mesma cadeira. Logo voltavam a correr na sala, distribuírem dedadas. Dois ou três se jogavam ao chão, diante do quadro, abriam e fechavam os braços e as pernas de maneira frenética. Outro alcançava o fundo da sala e rolava no chão de uma parede à outra até chegar à porta da sala de aula e sair.
– Posso fazer a chamada, Eraudo?
– Quem faz a chamada sou eu.
Na hora atividade, Eraudo conversava com Ceuto:
– A floresta, cansada de Leão, elegeu Macaco. E ela era ameaçada todos os dias pelas macaquices. Leão, que via Burro com olhos de fome, perguntou à floresta: “Arrependida?” Floresta, tão cansada de Macaco, quanto se cansou de Leão, elegeu Papagaio; e não tinha mais sossego com a tagarelice.
No outro lado da mesa, na sala-mor:
– Ouro?
– Não tenho. Selic não me deixa tê-lo.
– Quem sabe... Prata.
No lado oposto da mesa:
– Eraudo, ainda acredita em Platão?
– Preciso acreditar?
– Ele foi mesmo o primeiro a dizer que educação e política são siameses?
Na frente de Ceuto e Eraudo:
– Fui!
– Vumbora!
– Não me leve nessa maldita hora.
– É uma honra.
– Aceita minha simplicidade?
– Ela me lembra Lady Macbeth!
No lado da mesa, Eraudo e Ceuto:
– Ceuto, é dever da educação, conforme li, proporcionar à alma primeiro e ao corpo depois a estética em sua perfeição mais bela.
– Foi nosso colega Platão, foi?
– Mais café?
– Tem bolacha?
– A prudência aquiniana é adequada em momentos de aprendizado.
Na porta da sala:
– Que fofo, amiga, essa amizade de Eraudo e Ceuto.
– Não acho certa essa amizade de Ceuto e Eraudo.
– E acha errado por que essa amizade de Eraudo e Ceuto?
Na mesa:
– Prudência aquiniana?
– Prudência aquiniana, Ceuto.
– Erasmo era humanista.
– Rousseau preferia a liberdade como valor supremo! disse Filosofia, que acompanhava o bate-papo, na hora atividade, dos colegas Ceuto e Eraudo.
– Conta-se que Comte quis pôr ordem na desordem, disse Eraudo, isso é verdade?
– Spencer, disse Sociologia, lutava pela vida. E quem não? Durkheim quis formar cidadãos.
E a conversa discorria entre os quatros que lembravam figuras do último Livro. Trouxeram eles à conversa Decroly e a visão do todo. Mais colegas vieram construir-desconstruir-montar-desmontar. Ensino Religioso discutiu com Arte. E Educação Física preferiu a imersão nas imagens velozes das redes sociais cujo indicador corria na tela de cristal líquido, olhos grudados ao diodo orgânico que emitia luz.
– Engraçado, né! disse História. Li que Makarenko tinha preferência pela vida em grupo.
– Sei que alcançou o descarte, né. Escola não permitia mais. E Claparède, um dia, preferiu unir crianças e conhecimentos. Pensar que isso houve, né.
– Nem vou falar de Wallon!
– E lembrar que, um dia, a felicidade passou por aqui com a Summerhill!
– Ninguém fala mais do professor Anísio.
– Por onde andará Carl Rogers?
– Liberando algum caminho! disse Eraudo.
– E o sonho de que cada qual fosse criador e criatura do currículo escolar?
– Se foi com Lawrence Stenhouse. Aliás, por onde andará Stenhouse?
– Olhando as paredes, não consigo ver sua borboleta. O que vejo? A larva que ela foi. Não a larva propriamente vista, mas o que a gerou: o sonho que lhe fez voar. Voar e colorir-se. Colorir-se ao alçar seu voo, alçar voo e tornar sonho realidade. Sua borboleta, portanto, é sonho realizado; o sonho de uma larva que, um dia, ousou voar.
– O que eu ensino não importa. Eu sigo a sequência didática. Se é dêitico que me mandam fazer, é dêitico que eu levo à sala de aula. Levo dêitico como referência, também o bojo das classes gramaticais, as referências catafórica e analógica se assim demonstrar o Senhor Pronome em todos os pormenores.
– Sou diferente. Minha filosofia trabalha a anima e o animus, que entram na sala de mãos dadas; ele de paletó lascado atrás e gravata-borboleta, ela de véu, grinalda e sapatinhos de cristal.
– Ó povo, disse Direrrepilo, não vamos confundir Mneme com Anamnésis. A última vez que nos confundimos, Memória chocou-se com a Recordação e foi um deus nos acuda.
– Essa manhã, antes de acordar, sonhei com água, Direrrepilo. Não gosto de sonhar. Não gosto de água. Evito gostar. Era água escura, translúcida, caudal, serena. Não gosto de água. Veja o que aconteceu hoje na escola.
– Que coisa!
– Terrível.
– Não vamos voltar a essa arena! pediu Direrrepilo e abandonou a sala.
Na sala de aula:
– Sétimo ano!
Na sala de aula vizinha:
– Oitavo ano!
Na sala de aula defronte aos anos sétimo e oitavo:
– No nono ano, ainda encontro quem não sabe decodificar a palavra pare.
– Aqui é assim.
– Desconhece o alfabeto?
– O que é “desconhece”?
– Não sabe ler nem escrever?
– Não, porque se soubesse escrever também, tipo assim, também lia.
– Desconhece é a forma transitiva direta do verbo desconhecer, ou seja, o que não tem conhecimento, ou seja, ignorar...
– Ignorar?! exasperou-se. Tá me chamando de ignorante? Ei! Sou menor. Vou procurar meus direitos! deixou a sala batendo a porta.
Ceuto começou a escrever no quadro.
– Ceuto!
“Retórica do cotidiano. Os textos atemporais são atemporais porque falam sobre a condição humana no mundo. Deuses, semideuses, heróis, semi-heróis surgem como metáforas...”
– Ceuto!
“...que se justificam explicando o que é esta condição humana no mundo. Inicia-se...”
– Porra, Ceuto!
– Quê!
– Não vou copiar.
– Por quê?
– Isso não tem no livro?
– Sigo a Pedagogia do Faça Você Mesmo.
– Que porra de pedagogia é essa!
– Que cada qual fosse criador e criatura do currículo escolar.
– E o livro?
– Vocês molharam, rasgaram, jogaram no teto, entupiram o vaso sanitário com o livro.
– Isso não tá no livro?
– Não.
– Não vou fazer.
– Por quê?
– Não entendo sua letra.
– Pergunte.
– Tenho preguiça.
– Isso cai em prova?
– Cai.
– Chuto.
“...desta semântica – a metáfora que o mundo é um inferno a ser em breve transformado em céu – é a partir desta metáfora de superpessoa que sensações se gestam. Faz discurso quem possui conteúdo; é o discurso para se estar neste mundo...”
O tempo passa. Aula segue o tempo. A bagunça impera durante 2h25min.
A escola pisca o olho cansado, desce a pálpebra, cobre a luz, apaga a esperança. A pálpebra sobe, volta a olhar a imagem do passado, esta somente dá lugar a escola do presente.
No recreio, os braços tocam-se, tocam-se os corpos qual pingo quente de vela, disse Luça, que aparece com a cara de louça, a mais linda entre as moças. Não fica ninguém que Luça não passe a mão, distribua atenção, fale sobre vida no sertão:
– Diferente, óvio, Luça disse, a vida vivida na Floresta do Grito, próxima à Floresta da Morte.
– Jamais faltou gente ruim, Luça.
– Óvio!
– Desde o começo do mundo, disse o macaco ao sagui, desde o palhaço rei, sempre sobrou gente ruim.
Na cozinha:
– Como iríamos desenvolver as habilidades?
– Perguntasse, disse a cozinheira, à Cognitiva e à Socioemocional.
– Elas eram novas na escola. E as outras?
– Foram exoneradas.
– Quando?
– Quem tá cuidando disso é o setor jurídico.
– E o sindicato?
A cozinha, na escola, ultimamente, estava uma sopa. Nos corredores:
– Morreram todos da minha família.
– Como!
– Ontem, sepultei meu pai.
Na biblioteca:
– Vamos nos desfazer, mãe, da metade dessas tralhas.
No laboratório:
– O chão da sala era esse verdadeiro lixão.
Na sala do café:
– Um professor era substituído por outro numa formidável algazarra.
Na sala de aula:
“...se não há o que dizer, não há como produzir sua retórica. Toda retórica que foge do cotidiano é falseada pelo próprio discurso. O gênero que se escolhe para escrever ou falar, só se fala e se escreve quando há gestação; sem...”
– Que raio de palavra é essa?
– Qual?
– Essa.
– Essa?
– Não.
– Essa?
– É.
– Gestação.
– Gestação?
– Gestação, porque sem gestar o que se escreve e o que se fala...
– Oxi!
“...gestar o que se escreve e o que se fala, não se escreve nem se fala – e quando se escreve ou se fala, sem gestar, foge-se da retórica cotidiana...”
– E agora?
– Cotidiana.
“...falseando o texto, porque o escrito e a fala perdem a espontaneidade. O poeta só escreve o poema quando gesta a poesia, o contista só faz o conto após gestá-lo, o romancista idem e também ocorre com o ensaísta, o cronista etc. É...
– E ali?
– Etc.
“...retórica do cotidiano quem dá sentido ao texto.”
Direrrepilo tem por hábito fazer caminhadas em torno da escola, observar. No quadro, nas salas, as figuras que se encontram nos banheiros.
Alunos, nas aulas de Eraudo, tinham pressa em adaptar a sala de aula ao coliseu romano.
Na sala da direção:
– Já foi aberta uma sindicância para investigar se as aulas de Kakão eram compatíveis com o projeto político-pedagógico da Medeia de Jasão?
Na sala identificada como Os Últimos Dias, penúltima sala antes da sala dos livros didáticos que se amontoavam em mesas, cadeiras, chão, emperravam os livros excedentes a porta da escura e fétida sala:
– A aurora não tinha dado as caras?
– Não.
– Moravam ela e o pai na casa alugada próxima ao Mar das Ximbras.
Na sala de aula:
– Não vai me agredir, vai?
– Vou pensar.
– Pedi a atividade, mas entregue se quiser.
– Tá bom.
– Ontem, perdi um colega que morreu na escola.
– Não posso ser cobrado!
– Cobrado de quê!
– Desse trabalho de fazer trabalho em casa.
– Foi só uma gague do planejamento de aula exigido pela coordenação.
– Uma o quê! disse, e cerrou os pulsos com cara de mal.
TV mostrava as raivosas rajadas de vento que desindicavam os caminhos da escola. No corredor, alunos apressados. Na saída, as motos atropelavam-se, Van escolar, ônibus. A três quadras, o metrô e a pressa nos trilhos. Na frente da unidade escolar, gente de todos os tamanhos e larguras em um mundo de cores e de todas as vozes. Pais esperavam filhos, irmãos levavam outros pelas mãos. Eraudo apresentou esta proposição:
– Ceuto, vamos aproximar de novo os alunos do conhecimento.
– Eraudo, não sei se isso é o certo a se fazer.
– É o certo, Ceuto!
– Tenho demandas demais e...
– Um espaço na agenda.
– Tenho 1.050 notas pra registar até dezembro.
– Definitivamente...
– Definitivamente impossível fazer aluno ter interesse por conhecimento.
Uma velha casa abandonada na frente da escola era comparada à cadeia, segundo a opinião de alunos; comparada a um hospício, na avaliação de outros.
Na visão de Iaiá, vivíamos os últimos dias de Pompeia.
No pátio, um vigia conversava com outro como se remexesse em ossos que cabiam apenas aos paleontólogos. Eles revezavam no portão da escola seu ofício. O tempo era gasto entre o controle, o vaivém do portão, a tela de celular. Um bom-dia, uma boa-tarde, mais ossos arremessados nas conversas que eram jogadas fora. A aprendizagem profunda passava na calçada oposta à escola. Os dados eram rolados à noite.
– Todos vão ser em breve substituídos.
– Como!
– Não acredita, né?
– Acreditar em quê!
– Calma, Zé.
– Não vai querer me converter, vai?
– A última onda é o fim de nossa linguagem.
– Que linguagem, cara!
– Vou mostrar até o fim da história.
Na cozinha:
– Dona Clota taí?
– Tá, ó Dona Direrrepilo! disse Laquesis, que cuidava da limpeza. Clotinha acabou de chegar; desceu do ônibus agorinha mesmo.
Passou pela porta da cozinha e foi atender Direrrepilo, que lamentava das dores. Vinha com uma retaguarda de dar pena, avaliou Laquesis.
Átropos, sentado numa mesa com início sem fim, saboreava uma xícara de café:
– Eu daria a vida por essa escola.
– Por quê? disse Laquesis.
– Porque faço parte dessa família.
– Como acho lindo ouvir isso, Seu Átropos.
– Bisa, que foi aluna aqui na escola, na década de setenta, era estudante de segundo grau. Bisa fez um desenho de uma figura do regime na corda bamba. Maldita seja aquela história!
– Por que tá chorando, Sr. Átropos?
– ...
– Quer uma água com açúcar? Eu vou pedir à amiga Clotinha! disse; saiu e Átropos ergueu o braço com o sinal de que não fosse.
Na biblioteca, o professor de bigode olhava como se quisesse interferir na conversa da Direrrepilo, que tamborilava o lápis na agenda 2025:
– Na ludicidade, Lúdico de Ludus brilhava no olho esquerdo da professora, o outro era cego. Ela foi vítima do vírus que atacava a córnea humana.
Na xícara de café de Átropos, ele tinha a impressão de rever a Bisa.
– Ela foi perseguida, sabia, e era apenas menina.
– Quem, Seu Átropos?
– Bisa. Os porões esperavam por ela. Escapou.
– Escapou?
– Escapou.
– Graças a Deus!
– Sabia, naquela história maldita, sabia, inteligência foi perseguida, sabia. Era medo da invisibilidade presente.
– O senhor era uma pessoa lida, Sr. Átropos.
– Era de outra época.
– Percebi, Seu Átropos, percebi.
Aquela sala escura tinha vocação ao silêncio nas noites de chuva. E Clota, se não estava na boca do fogão, se aprisionava em tutoriais de comida. Hábil a preparar receitas, acompanhava todos os vídeos disponíveis nas redes a ponto de salivar.
Na sala de reuniões, Biologia comparava esta reunião a reunião pegajosa num círculo de personagens mesquinhas. Os micropoderes estavam em toda a minúscula sala. Os participantes cheios de palavras e exaltações.
Na entrada da sala de aula:
– Disposto, Eraudo, a investigar as causas do ódio ao conhecimento?
– É o certo, Ceuto, se não for o errado.